A MENINA QUE CARREGAVA BOCADINHOS
É necessário deixar-se surpreender pelos escritores contemporâneos. Afastar-se dos cânones supremos como Luís de Camões, Machado de Assis e Eça de Queirós, passando pelos titãs Guimarães Rosa, José Saramago e Graciliano Ramos, e notar que o século XXI já vai em quase duas décadas e há muitos autores que revisitam a literatura e a expandem.
Caso muito emblemático é o do escritor português Valter Hugo Mãe, ainda mais nos atuais tempos incertos de bloqueios, convicções e ódios eternos que nascem todos os dias. Em seus romances há um conflito impossível do indivíduo com o lugar em que está, ou com certos ares fantásticos (como em O filho de mil homens) ou com uma tristeza interna histórica e etária (como em A máquina de fazer espanhóis).
Em seus contos, como os publicados em Contos de cães e maus lobos, de 2015, um ambiente de sonho e de fábula se constrói, capaz de revelar e despertar a humanidade que ainda persiste em cada leitor. Todos eles se poderiam ver, mas aqui se escolhe “A menina que carregava bocadinhos”, como forma de mostrar a resistência não-violenta que se pode demonstrar, mesmo com opressões e vinganças a cada passo.
Sem mais, vamos a ele:
A MENINA QUE CARREGAVA BOCADINHOS
(Valter Hugo Mãe)
A menina entrou na casa grande com nove anos para trabalhar em troca de sopa e de um colchão estreito. Estava muito salva, diziam-lhe ajuizadamente todas as pessoas. Se não a tomassem como criada teria apenas a miséria por garantia. Naqueles tempos, a pobreza não se curava senão com a piedade de quem podia, e ela acedeu ao seu destino assim pequena, feita de ossos fininhos, uns olhos claros esbugalhados de ansiedade, confusa com palavras educadas que nunca ouvira e deslumbrada com o enfeitado da casa. Pensava: vão engordar-me, vão acalmar-me, vão educar-me as palavras e pôr-me bonita.
Era preciso que tratasse das coisas leves, como as feitas de panos diversos e as de carregar bocadinhos. Andava pela lavandaria, arejava cortinas, engomava folhos de infinitas saias e as camisas brancas ou as calças compridas do patrão. Também levava comida aos cães presos ao fundo do campo, junto do muro mais distante. Os cães latiam ali por qualquer ruído ou presença estranha. Eram seguranças zangados, odiavam intromissões e obedeciam furiosamente aos interesses dos senhores. Nos primeiros dias, os cães odiaram a menina. Depois, aprenderam a amá-la no modo invariavelmente irritado que tinham de existir. Com o tempo, ela haveria de se sentir uma esquisita irmã dos cães, como eles aprisionada e grata, aprisionada e fiel, o que era diferente de ser feliz ou, sequer, entender a felicidade.
A menina cuidava de não se magoar. Escutava as ordens, aligeirava-se, dizia sempre que sim, e trabalhava sem muitas conversas. Achava que as conversas eram modos de aumentar o trabalho, porque ninguém a chamava para discutir a beleza das cores do céu ou quaisquer sonhos de princesa. Escutava ordens e reprimendas, a toda a hora lhe encontravam um desmazelo numa mecha de cabelo, no baço de um sapato, no torto do avental. Entendia que, para fazer parte daquela vida requintada, teria também de arranjar-se num enfeite bastante, para não descombinar com as mobílias ou com as passadeiras aprumadas. Importava que estivesse branca, lavada, para ser uma presença sem susto e sem cheiros na delicadeza que era a vida rica dos seus nobres senhores.
Lentamente, aprendeu a esquecer-se da sua própria família, para não lhe sentir a falta, para não carregar incompletudes. Queria estar inteira, como quem resolve passados e abraça o presente sem hesitações. Era para não guardar medos, não alimentar medos. Construía esquecimentos, pensava ela. Gostava de construir esquecimentos. Tinha uma urgência enorme em dedicar-se às tarefas sem esperar nada. Comia a sopa e ajeitava-se no colchão estreito para descansar e dormir. Se tivesse de esperar, seria apenas isso, a sopa e o descanso mais o sono. Era como lembrar exclusivamente do presente e um pouco do futuro. Lembrava aquilo que a mantinha viva.
Para poupanças, a menina vestia uma farda e recebia peças de roupas velhas que circulavam pelas criadas. Eram roupas das quais a senhora desistia e as criadas usariam para missas de domingo ou raríssimas festas. Um dia, já nos seus quinze anos de idade, habituada e assim agradecida, sempre muito salva, a menina recebeu da patroa um grande lenço de pescoço incrivelmente sedoso e brilhante que se rasgara numa das pontas. Era um tecido luminoso que quase não obedecia às mãos. Soltava-se dos gestos como uma coisa viva que quisesse caminhar no vento. Era de uma frescura intensa que lhe criava a impressão de mergulhar as mãos na água. A menina, emocionada com ser dona de algo tão puro e belo, foi ver ao sol tamanha oferta e contemplava o quanto transparecia e como o quintal se coava por aquelas cores igual a ter descido sobre o mundo um arco-íris. Assim mesmo conservou o lenço rasgado. Era como um animal ferido que não deixava de ser belo. Ficava dobrado na sua gaveta e acendia-se de cada vez que o buscava e o deitava sobre o corpo, semelhante a um pedaço de água que a abraçasse.
Nessa altura, uma das criadas mais velhas começava a ensinar-lhe a costura, para medir os tecidos longos e fazer-lhes bainhas rigorosas. Era fundamental que se estendessem toalhas novas, imaculadas na sua brancura, para os almoços e jantares de cada dia. Quando estava a família sem visitas, não se punham os bordados, mas nem por isso se asseava uma mesa com qualquer trapo. A pequena criada aprendeu a mexer nas agulhas e nas linhas, aprendeu a coser num traço contínuo, certinho, como se tivesse uma máquina. Remendava e refazia.
Aproveitava as tiras que restavam para guardanapos, inventava laços para adornar os cantos. As toalhas corriqueiras da casa grande passaram a ter diferenças, discretamente tornadas mais divertidas, mais bonitas. Toda a gente reparou nisso. Os senhores estavam orgulhosos por terem acolhido aquela criadita. Tinham sido ajuizados na escolha e na instrução que lhe ministraram. Tinham uma casa feliz. Uma casa com a inteligência adequada, era o mesmo que dizer que serviam de boa escola para a vida.
Certo domingo, na luz ainda débil da manhã, antes da missa das sete, a criada assomou ao átrio numa blusa nunca vista. Era quase como apenas uma cor deitada acima de uma roupa interior branca. Uma cor que pairava como um perfume de se ver sobre o seu corpo sempre magro. Amanhecia o domingo de verão e a moça, também corada, parecia parte da luz nascendo. Caminhava timidamente nessa sensação flutuante, líquida. As pessoas espantavam-se, porque as criadas não acediam a um tal requinte. E tanto se espantaram que a patroa veio saber o que se passava, como se houvesse culpa em alguém se mudar para bonito. A moça transformara o velho lenço rasgado. Como quem costura charcos de água, ela criou uma obra perfeita e, ainda que a saia preta sob o avental de serviço a mantivesse a trabálho, quem a encarava julgava ver uma moça com a possibilidade de ser feliz. A patroa, despreparada para a surpresa, ordenou-lhe que fosse embora, que entrasse imediatamente em casa e se arranjasse nas vestes que lhe competiam. Ser bonita estava absolutamente fora das suas competências. Não eram modos para uma criada, e não se fazia festa na missa de domingo. Estava obrigada a ter decoro, a ser discreta. Estava obrigada a ser ninguém. Como se a beleza ou a felicidade fossem indecorosas.
A moça, apressada, obedeceu. Pensou que, remendado, o lenço continuava a ser como um bicho ferido. Sentia, contudo, que o rasgado passara para dentro do seu peito.
Considerou que fora ridícula a sua vontade. Deixara-se entusiasmar pela imaginação e pelos predicados mágicos do lenço. Nunca deveria ter esquecido que lhe competia cumprir tarefas para uma sobrevivência acordada desde os nove anos de idade. Ultrapassara o que se guardara para seu destino. Fora ridícula, de verdade. Fora ingénua como as crianças. Assim se despiu daquela coisa de água e a devolveu à escuridão da gaveta igual a um peixe vazio, sem ar. Coube, depois, novamente na sua camisa de hábito. Ponderou regressar à rua para atender ainda à missa, mas desistiu. Mais valia que fosse adiantar trabalho, para se redimir, para construir o esquecimento e recuperar a calma e a urgente sensação de dignidade.
Na tarde daquele domingo, a patroa mandou a moça para longe, a um recado demorado, e meteu-se no quarto dela à procura do lenço que agora era coisa de se vestir. Nos parcos pertences da criada, encontrou-o em breves segundos. Deitou-lhe um candeeiro por cima para ver melhor, como se pusesse aquilo na mira de um microscópio na banca de um laboratório. Estava incrédula com a ciência da criada. Nem os pontos de costura se notavam. A linha compunha tudo sem se ver. Uns pontos mínimos que mais se assemelhavam a sombras fugidias, improváveis, juntavam as partes. A patroa mexeu e remexeu, algo a incomodava na perfeição daquele trabalho. Costumava deitar fora as roupas sem serventia, estragadas, imprestáveis para uma senhora de prestígio, não podia esperar que um lenço rasgado pudesse ser refeito noutra obra mais impressionante ainda. Era como transformar uma matéria morta noutra presença quase falante. Algo absurdo que conferia um talento insuportável a uma criada tão jovem. Queria dizer, uma inteligência insuportável a uma criada. A senhora achava que as criadas deviam ter uma inteligência reservada, manifesta no cuidado da casa e no bem-estar essencial dos patrões. Eram para ser espertas e íntimas. Como pessoas íntimas, quase secretas de quem a comunidade lá fora não escutasse nada. Fechou a gaveta com a sensação de trancar uma caixa de pólen. A senhora não sabia o que fazer e, por isso, não fez nada. Apertou o rosto. Desgostava de tudo. Estava refilona e cheia de encomendas. Cobiçou ser ainda mais bela e andar ainda mais bem vestida. Considerou que aproveitaria cuidadosamente para si mesma a benesse de lhe ter aparecido tão requintada costureira.
Disseram-lhe para carregar bocadinhos de terra. Mudavam-se os vasos e plantavam-se melhores ideias, explicaram assim. Ajardinavam. A criada então fazia. Escadas acima e abaixo, com dois baldes de terra limpa que escolhia ao lado das hortas, obedecia já sem tristezas, apenas a força de sempre. Durante as conversas esparsas, comentavam as mulheres acerca do que acontecera. Achavam uma arrogância que a moça quisesse sair à rua vestida de rica. Era como querer os sonhos dos outros, era como enganar os outros. Quem a visse provavelmente haveria de julgá-la herdeira e cheia de instrução quando, na verdade, mal sabia ler e vivia da paciência de piedosas almas. A criada, suja de terra e sempre a trabalhar, ia e vinha entre as palavras que se diziam e escondiam. Fazia de conta que não lhe respeitavam, para não se sentir obrigada a elucidar ninguém sobre o que lhe passara pela cabeça. De todo o modo, não era nada complicado de entender. Talvez quisesse ser um pouco bonita, nem que apenas aos domingos, para a missa, como quem interpreta um teatro, como quem representa o que não é e pede a felicidade emprestada. Como se, por uns breves instantes, a vida dos trabalhadores fosse coisa diversa e tivesse passeio ou amor.
Quando a criada estava quase nos dezoito anos de idade, o corpo inteiro de mulher e um brilho nos olhos que era glória da saúde, achavam as colegas que mais valia que fosse dada de casamento a um qualquer. A patroa, que havia muito a punha de costureira para as suas vaidades, a cuidar de uma infinidade de folhos como quebra-cabeças derramados pelo corpo abaixo, não queria abdicar de criada alguma. As criadas eram investimentos demorados e não se podiam jogar porta fora por caprichos, sem boa ponderação. A costureira, invariavelmente frágil, valia para minudências que marcavam a nobreza dos senhores. Era bom que não tivesse amores nem soubesse nada acerca disso. No entanto, à revelia da prudência, lá apareceu pela casa grande um rapaz a entregas esporádicas que olhava para a criada com alguma lentidão. À passagem da criada, o rapaz devagava.
Suspendia-se até no fôlego, via encantado, alegrava-se e sofria ao mesmo tempo. A moça, por seu lado, mantinha o discreto brio, escapulindo-se de imediato, correndo às refeições dos cães. Por vezes, ali ficando um bom bocado. Não era que discutisse a sua vida com os cães, porque não discutia a vida, mas fugia porque lhe dava um medo estranho a partir dos sentimentos. Estava esclarecida acerca do perigo interior, como dizia para si mesma, o que advinha de vontades que não podia ou não sabia controlar. Os cães refilavam, que era maneira de expressarem cada coisa, desde o amor à aflição. Talvez pressentissem na moça uma dúvida qualquer. A moça, sem querer, carregava aos bocadinhos o amor para dentro de cada gesto, como quem se movia para um único objectivo. De tudo quanto alguma vez carregara, o amor era o mais difícil de segurar.
O amor nascia-lhe só de existir alguém. Era o mais genuíno e limpo dos sentimentos.
A senhora, proprietária e desagradada, ordenou que o rapaz não voltasse àquela casa. Haveriam as entregas de ser feitas por um velho que já não observasse mulheres nem estivesse ainda dotado de deslumbres. A criada, que queria achar nisso uma decisão justa, distraía-se. Começava a magoar-se com as agulhas. Não reparava no que fazia, furava os dedos, chorava de dor. Corria para os cães, frustrada e sem se entender. Comia menos, dormia menos, estava igual a emburrecida, estragada, adoentada, malcriada. A criada andava desnorteada e ninguém lhe mostrava orientação que bastasse. Passavam o boato de que a moça sucumbira de bem-querença.
O pouco que vira o rapaz das entregas muito lhe servira de carinho. A moça devagava também, a pensar para longe como um animal enjaulado que apenas concebe o caminho livre.
No domingo seguinte, antes da missa, naquela luz nascente, a criada vestiu a sua blusa de princesa e soltou os cães que se puseram em reboliço e latindo. Quem estava no átrio, à espera que todos se reunissem para seguirem até à igreja, viu a moça passar como uma coisa ardendo e os cães sempre rosnando em torno dela. Desapareceu para o emaranhado das árvores, justamente para o lado em que ficaria a casa dos seus pais. Julgaram, as cabeças estupefactas, que no matagal se daria um incêndio. Mas nunca mais viram ou ouviram falar da moça. A liberdade também era isso, não voltar. O amor existia em todas as direcções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para lá de qualquer direcção.
***
Há muitos elementos que evocam os contos de fadas: a personagem que sofrerá as atribulações, a entidade superior que fará as maldades (a patroa, ao invés de uma madrasta), o destino maior que a protagonista e para o qual ela se encaminha, os elementos que acabam por ajudar a moça a atingir o seu caminho (os cães, o lenço, o rapaz). Mas também o conto se afasta dessa atmosfera fabulosa, pois o ambiente é inserido num cotidiano de opressão social, inclusive com uma linguagem de fina ironia.
A história em si é carregada de simbolismos. A menina que trabalha para a família rica, de início, une-se aos cães, como um paradoxo de ser agradecida por estar presa, ou melhor, de não ter liberdade para ser salva… Nem os cães nem ela podem compreender a felicidade, por isso apenas “existem”. Como modo de canalizar tais sentimentos, o foco no trabalho, como eterno presente, e o esquecimento da família, como corte com o passado. E o futuro se torna sombra imprecisa, apenas uma repetição do dia presente (de sopa, de colchão e de trabalho).
O primeiro elemento despertador é o lenço. Chama a atenção a passagem do tempo, pois a menina encontra-se com quinze anos, descobrindo a beleza das coisas. O lenço que a patroa despreza (por estar rasgado numa ponta) “era de uma frescura intensa que lhe criava a impressão de mergulhar as mãos na água”. A essa revelação soma-se a habilidade adquirida de costurar, criando padrões de beleza que produzem uma dupla reação: da parte da menina, ela ganha estatura, ao fazer um vestido para si, tornando-se um ser luminoso e que se eleva; da parte da patroa, ao pasmo inicial sucede-se um incômodo invejoso. No embate, a menina se autorrebaixa, julgando-se incapaz (“estava obrigada a ser ninguém”). E a patroa rebaixa-se, entrando no quarto da criada e consumindo-se pelo fato dela poder criar coisas belas.
Há uma espécie de reordenação, com a menina interiorizando uma luz que não mais se apaga, mesmo com a série de ações de opressão e sufocamento que a patroa impõe (carregar terra, trabalhar sempre, desprezar-lhe). A saída que ela encontra é a beleza fortuita, a felicidade emprestada e clandestina que ela se dá: “Como se, por uns breves instantes, a vida dos trabalhadores fosse coisa diversa e tivesse passeio ou amor.”
Eis que ela faz dezoito anos. E, àquela chama inicial, sucede-se o brilho do amor e do despertar do corpo de mulher, mesmo com a patroa “prudente” ocultando aquele investimento (sua posse, afinal).
O segundo elemento despertador é o rapaz. Embora não haja qualquer interação entre eles, há o bastante para deflagrar a “bem-querença” da moça, e a faz “Carregar aos bocadinhos o amor para cada gesto”. A moça se torna um ser de amor, somado ao ser de beleza que já era, tão maior que si mesma que não consegue mais manter-se na rotina opressora em que estava. Por isso que ela desaparece, com os cães, como uma coisa ardendo.
Assim, esse conto revela as formas de descobrir a própria força interna. Para a moça, à beleza sucedeu o amor. Mas tudo funcionando como impulsos para a conquista da própria liberdade. Se a liberdade também é o “não voltar”, é precisamente a impossibilidade de regressar ao estado inicial. A moça não poderia ser aquela menina agradecida do início, da mesma forma que os cães, quando libertos, ampliam-se para o mundo todo. E o amor é isso, expandir-se em todas as direções, atingir todas as pessoas.
E pronto!