quarta-feira, 24 de julho de 2019

CÍRCULO VICIOSO

Machado de Assis é um dos nomes mais emblemáticos da literatura brasileira. É de admirar sua capacidade criativa com as palavras, pois personagens como Capitu, Bentinho, Brás Cubas, Rubião, Simão Bacamarte parecem possuir mais vida e existência que muitas pessoas reais. Ao mesmo tempo, ele se torna (como grande injustiça) um dos mais temidos escritores, em alguns casos num processo quase traumático de alunos. Isso ocorre por ele ser difícil? Na verdade, ele é exigente, ou seja, ele pede que seu leitor entre no jogo, dando pistas que, se não seguidas, é como seguir por um caminho só olhando para o chão, sem reparar em mais nada.
Seus romances e seus contos são os textos mais conhecidos, mas, se ele somente tivesse escrito poemas, possivelmente estaria no mesmo nível de Olavo Bilac, Raimundo Correia ou Alberto de Oliveira, seus contemporâneos. Alinhando-se ao Parnasianismo, o poema abaixo, intitulado “Círculo vicioso” e publicado em Ocidentais (1880) não é a descrição de uma cena, mas sim uma espécie de alegoria narrativa, em que quatro personagens falam, cada um por sua vez, da insatisfação com sua própria natureza e dos desejos de tornar-se outro ser.
Sem mais, vamos a ele:

CÍRCULO VICIOSO
(Machado de Assis)

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando[1] a lua, com ciúme:

“Pudesse eu copiar-te o transparente lume[2],
Que, da grega coluna à gótica[3] janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela”
Mas a lua, fitando o sol com azedume[4]:

“Mísera[5]! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela[6]:

“Pesa-me esta brilhante auréola de nume[7]…
Enfara-me[8] esta luz e desmedida umbela[9]…
Por que não nasci eu um simples vaga-lume ?”…

[1] olhando; [2] luz, brilho; [3] estilo artístico europeu do século XII à Renascença; [4] ressentimento, despeito; [5] interjeição de desagrado, como “Droga!”; [6] pálpebra (ou seja, olho) brilhante; [7] divina; [8] aborrece-me, enfada-me; [9] pano protetor em forma de guarda-chuva ou chapéu-de-sol.

***
A ideia do círculo vicioso é uma sucessão de cenas sem fim, em que o desfecho é um retorno ao início. No caso do poema, o vagalume quer ser a estrela, a estrela quer ser a lua, a lua quer ser o sol e o sol quer ser o vagalume, ou seja, cada um quer ser algo diferente do que é.
Esse soneto, além da já conhecida estrutura em quatro estrofes (dois quartetos e dois tercetos), com versos alexandrinos (com doze sílabas poéticas) e rimas interpoladas (ABBA), faz com que cada estrofe retrate um dos personagens, criando-se um gancho final para o personagem seguinte, na outra estrofe.
Assim, começando com o vagalume, o desejo que o inseto fala (“Quem dera”) é de ser uma “loira estrela”, por notar nela uma luz mais viva, que arde, associando-a como uma “eterna vela”. O poeta, então, encerra a estrofe com um recurso que seria repetido nos finais das estrofes seguintes: “Mas”, deslocando-se o foco do vagalume para a estrela.
Ela, olhando a lua, também externaliza a sua vontade de ser outra coisa. Por meio de um hipérbato (ou seja, a inversão da ordem sintática direta), a estrela comenta que a luz da lua foi contemplada pela fronte amada e bela (daquelas que inspiram poemas ou que suspiram para a lua) por todos os tempos, indo da Antiguidade (“coluna grega”) até a Idade Média (“gótica janela”). Algo que a estrela ciumenta também queria ter.
Eis que a lua, que, pela visão da estrela, teria a melhor das vidas, também se encontra descontente, pois olha para o sol e sente ciúmes. Toda a luz da lua (desejada pela estrela e tão distante do vagalume) não se aproxima da “claridade imortal” do sol, como resumo de toda a luz.
E o sol, por fim, baixando os olhos – uma vez que está no mais alto posto, como se fosse uma das faces de Deus –, queixa-se que tal luminosidade é um fardo e que preferia a simplicidade de um vagalume…
O símbolo máximo desse poema é a luz e sua intensidade. A luz do vagalume é frágil, mínima. A da estrela arde no azul e assemelha-se a uma pequena vela. A da lua, maior que a da estrela, ainda inspira amores e belezas. E a do sol, grandiosa, imortal, como auréola divina. A vontade de ser maior do que se é, inclusive espelhando-se em alguém, mostra-se, para Machado, como um “círculo vicioso”, pois sempre há alguém maior (com mais luz).

Machado não é o escritor malvado que criou livros chatos para aborrecer alunos… Se, para um leitor, os romances ainda não estão fazendo sentido, é preciso conversar com professores ou outros leitores e buscar os contos. Ou mesmo os seus poemas, que reservam muitas surpresas, como o acima.
O que é preciso é buscar Machado, que como poucos conseguiu observar a natureza humana, seu caráter e suas máscaras, e re-criar o próprio homem em histórias e palavras.

E pronto!

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